Motim de líder mercenário deflagra turbulência militar na Rússia

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Reprodução

Na mais grave crise política interna desde que Vladimir Putin chegou ao poder em 1999, o governo da Rússia acusou o líder do principal grupo mercenário a serviço do país na Guerra da Ucrânia de motim armado e determinou sua prisão.

Na sexta-feira (23), veículos blindados foram vistos nas ruas de Moscou e de Rostov-do-Don, cidade do sul do país onde os mercenários disseram ter sido atacados por forças do Ministério da Defesa. A TV estatal chegou a interromper sua programação noturna para um boletim de notícias sobre a crise.

Não há turbulência militar deste tipo na Rússia desde 1993, quando o então presidente Boris Ieltsin reprimiu uma revolta da oposição com tanques nas ruas da capital e o bombardeio do Parlamento. Ato contínuo, as forças ucranianas iniciaram uma concentração na frente de Bakhmut, no leste ocupado do país. Kiev está em meio a uma difícil contraofensiva, descrita pelo presidente Volodimir Zelenski como mais lenta do que o esperado, desde o dia 4.

Tudo começou na manhã desta sexta (23), quando Ievguêni Prigojin, fundador e comandante do Grupo Wagner, postou um vídeo em uniforme militar acusando seu maior rival, o ministro Serguei Choigu (Defesa), de enganar Putin e a população russa.

Segundo ele, não havia motivo para a guerra, já que Kiev e forças da Otan, a aliança militar ocidental, não iriam lançar um ataque contra a Rússia. “Estamos banhados de sangue”, afirmou.

Mais tarde, em outra mensagem, Prigojin disse que forças de Choigu haviam atacado bases do Wagner em Rostov-do-Don e que com isso ordenava seus soldados a reagir contra as forças federais. Ele afirmou ter à mão 25 mil mercenários bem equipados, mais “o apoio da maioria das tropas russas”.

É uma bravata, aparentemente. Mas grave o suficiente para que o Kremlin mandasse interromper a programação noturna da TV estatal do Canal 1 e colocar no ar um boletim negando as acusações de Prigojin, descrito como um rebelde que será processado.

O general Serguei Surovikin, segundo em comando na invasão da Ucrânia e conhecido pela proximidade com Prigojin, pediu em postagem no Telegram que as forças mercenárias obedeçam à ordem de voltar a seus quartéis e que o aliado se submeta ao Kremlin.

Outros militares foram mais duros. “Isso é uma facada nas costas do país e do presidente. É um golpe”, disse o general Vladimir Alekseiev, adjunto dos serviços de inteligência do Exército. O FSB (Serviço Federal de Segurança, sucessor da KGB soviética) acusou Prigojin de traição.

A Folha falou com um analista militar em Moscou, que descreveu a situação como “pouco clara”. Ele duvida, contudo, que os mercenários tenham musculatura para dar um golpe de Estado.

Em uma mensagem na madrugada, Prigojin disse que suas forças começaram a retornar da Ucrânia rumo a Rostov-do-Don e que houve combates, com um helicóptero russo sendo derrubado.

Não há confirmação disso. Ele disse que sua “intenção é ir até o fim”. O governador local divulgou mensagem pedindo para os moradores ficarem em casa, calmos. “Ninguém está dormindo hoje”, afirmou por mensagem eletrônica Ivan, que mora na cidade e pediu para não divulgar seu sobrenome.

Mais cedo, ele disse que a situação estava calma, mas que era possível ouvir helicópteros. A cidade é vital para a Guerra da Ucrânia, sendo a sede do Comando Militar do Sul russo, a principal força militar perto das frentes de batalha, a dezenas de quilômetros de lá.

A situação é muito incerta no momento, mas se escalar para uma confrontação direta entre mercenários e forças regulares no sul da Rússia, o risco de uma instabilidade é grande.

A analista política Tatiana Stanovaia, da consultoria R.Politik, escreveu no Twitter que a única opção agora para o Kremlin é “aniquilar o Wagner”. Ela não vê risco de um golpe também, mas aponta a deterioração da posição de Putin ante sua elite política.

A crise vinha se desenhando havia meses. Conhecido como o “chef de Putin”, por ter tocado o serviço de alimentação do Kremlin, Prigojin viu seu grupo crescer de 250 voluntários em ação na anexação da Crimeia em 2014 a uma força vital para a ofensiva russa na Ucrânia.

No fim do ano passado, seu contingente foi estimado em até 50 mil homens, lutando principalmente pela tomada de Bakhmut, que ocorreu após muitas baixas (16 mil admitidas por Prigojin) em maio.

Ao longo do confronto, o líder do Wagner criticou abertamente a liderança militar russa, mas, como ocorreu nesta sexta, sempre poupou Putin diretamente. A mais recente crise ocorreu na semana retrasada, quando Choigu buscou enquadrar o Wagner e outras forças irregulares russas, forçando-as a assinar contratos para servir ao ministério.

Prigojin recusou-se. Agora, o modus operandi de governar de Putin parece ter se voltado contra o presidente: como os antigos czares, o russo sempre deixou seus subordinados se digladiarem em lutas palacianas, servindo de poder moderador.

Ainda é muito difícil avaliar o que está em curso na Rússia, mas é o maior desafio à autoridade de Putin por dentro do sistema desde que ele chegou à cadeira de primeiro-ministro, em 1999, sendo eleito presidente quatro vezes desde então.