Por Folhapress
Após sofrer diversas críticas por anunciar a inoculação em massa contra o novo coronavírus sem cumprir os procedimentos consagrados para novas vacinas, a Rússia agora anunciou que irá testar a Sputnik V em 40 mil pessoas nos próximos meses.
Na semana passada, ao anunciar a vacina, o governo russo havia dito que começaria os testes da chamada fase 3 em 2.000 pessoas de diversos países. No dia seguinte, alterou dados sobre ensaios numa base internacional sobre o tema.
Ainda assim, o país defendeu sua vacina contra a Covid-19, apesar de seguir sem divulgar dados clínicos completos dos testes feitos até aqui ou explicar exatamente como pretende cumprir a promessa de começar a vacinar sua população em geral em outubro.
Pelo anunciado até aqui, os testes da fase 3, que visa estabelecer os parâmetros finais de segurança e eficácia de vacinas, e pode durar de seis meses a um ano, segundo práticas usuais -mas que vem sendo aceleradas mundo afora por causa da pandemia.
O composto russo, que usa dois diferentes adenovírus humanos para estimular uma resposta imune que veda a conexão do novo coronavírus com as células, foi anunciado como registrado no dia 11 de agosto, e batizado em homenagem ao primeiro satélite artificial, o soviético Sputnik, evocando a surpresa que o feito de 1957 gerou no mundo.
“O decreto que permitiu o registro da vacina é adequado como resposta regulatória a uma pandemia, às condições que temos hoje”, afirmou em uma entrevista coletiva virtual Alexander Ginzburg, o diretor do Insituto Gamaleya, onde a vacina Sputnik V foi criada.
É uma forma branda de admitir a pressa russa, que é criticada por especialistas e fez com que a OMS (Organização Mundial da Saúde) requisitasse dados sobre os estudos até aqui.
“Eles serão publicados numa revista científica ainda em agosto”, afirmou Kirill Dmitriev, presidente do Fundo Russo de Investimento Direto, que bancou as pesquisas.
Segundo Ginzburg, até aqui 220 voluntários foram testados na versão russa dos testes, que fundiram a fase 1 e 2 em apenas dois meses de experimentos. O motivo para isso, afirmou o cientista, é a suposta confiabilidade que a vacina já havia apresentado anteriormente.
“Temos 3.000 voluntários que tomaram vacinas a partir de adenovírus nos últimos cinco anos. Monitoramos por dois anos 2.500 voluntários da vacina contra o Ebola. Isso deu confiança quanto à segurança do método”, disse.
E a imunização contra o Sars-CoV-2?
“A certificação russa nos permite inoculação em civis. Na verdade, é algo bastante restrito. Cada pessoa receberá um código QR (para leitura por celular) e será acompanhada pelas autoridades de saúde. Depois dos testes, vamos administrar ao público”, afirmou o diretor científico do Gamaleia, Denis Lugonov.
Anteriormente, a Rússia havia dito que vacinaria pessoas de forma concomitante aos testes da fase 3, que seriam feitos em profissionais de saúde. Não ficou claro na entrevista, na qual mais de 200 jornalistas enviaram perguntas para um grupo de WhatsApp e tiveram apenas algumas selecionadas, o motivo da mudança.
A impressão geral é de que os russos estão adequando os seus procedimentos. Algo a ver ainda é o marketing sobre o fato de a Sputnik V ser a primeira vacina registrada contra a Covid-19 no mundo.
Isso vem sendo martelado desde que o presidente Vladimir Putin anunciou o composto. Mas o fato de o registro ser provisório traz uma dúvida: a vacina da chinesa CanSino teve uma aprovação semelhante em 28 de junho, só para testes com militares.
Seja como for, nenhum dos três participantes da entrevista desta quinta (20) falou sobre a primazia da vacina russa.
Dmitriev afirmou que busca parceiros internacionais com perfil produtor de imunizantes para poder expandir sua capacidade atual de produção, estimada em 500 milhões de doses anuais.
“Índia, Brasil, Coreia do Sul e Cuba podem ser centros de produção e distribuição”, afirmou. Na semana passada, o governo do Paraná assinou convênio para testagem da Sputnik V no país, para eventual produção.
Outros estados estão em conversas com os russos, e o Ministério da Saúde chegou a discutir o tema com eles, embora já esteja em parceria com a Universidade de Oxford e a farmacêutica AstraZeneca para fazer a vacina no país. Em São Paulo, testes e produção serão do imunizante da chinesa Sinovac e do Instituto Butantan.
“Nós queremos produzir no Brasil. Compartilharemos todos os dados necessários”, afirmou. Ainda não foi feito nenhum pedido à Anvisa, agência que regula o setor, para testes com a Sputnik V no país.
Lugonov deu alguns novos detalhes acerca da vacina. Afirmou que nos testes pré-clínicos, ela foi administrada em ratos, porquinhos-da-índia, coelhos, macacos rhesus e chimpanzés.
Nos testes humanos, o grupo inicial de 38 voluntários de 18 a 50 anos teve uma imunização eficaz em 100% dos casos, sem efeitos colaterais além de febre e dor de cabeça. O medicamento existe em forma fluida (precisa ser guardado a 20 graus centígrados) ou liofilizada para dissolução (aguenta até 40 graus).
A Sputnik V requer duas injeções, uma com o adenovírus do tipo 26 e outra, com o do tipo 5, com um intervalo de 21 dias. Isso garantira, diz Lugonov, imunidade por até dois anos com resposta celular também, não apenas de anticorpos.
Dmitriev voltou a condenar o que chama de politização da vacina por países ocidentais, dizendo que as críticas à Rússia são preconceituosas. O Gamaleya trabalha há 24 anos com adenovírus e elaborou vacinas contra o vírus ebola, que foram aplicadas em 60 mil pessoas, a maioria na Guiné Equatorial.
Segundo Ginzburg, somando a quem foi testado nos últimos anos para esse imunizante e para outro, contra a Mers (uma virose semelhante à Covid-19, mas mais mortífera), aqueles que usaram remédios para câncer baseados em adenovírus, 20 mil pessoas foram expostas ao princípio da Sputnik V.
Novamente, houve uma mudança: antes os russos diziam ter a vacina contra a Mers. Agora, “ela só não foi registrada”, disse o diretor.