A obra da transposição do Rio São Francisco está perto da conclusão após 12 anos de trabalho e 7 de atraso. O investimento estimado é de R$ 12 bilhões, segundo o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR). O megaprojeto destina, desde o início, R$ 1 bilhão para mitigar impactos ambientais.
Pesquisadores defendem que é preciso monitoramento de longo prazo para determinar o impacto na fauna e na flora das áreas envolvidas, mas alegam que cortes de verbas públicas já estão limitando essa ação. A transposição do Rio São Francisco é a construção de dois grandes canais (um Eixo Norte e um Eixo Leste, totalizando 477 km em obras) que levam águas desse rio essencial para o Nordeste brasileiro até outra área, tradicionalmente bem mais seca.
No Brasil colonial, o rio hoje apelidado de “Velho Chico” era também conhecido como “Rio dos Currais”. Suas margens foram um eixo de expansão, do litoral para o centro do país, principalmente por meio de estradas e da criação de gado.
E foi aí que começaram os impactos da ação humana no São Francisco.
“Chamava-se Rio dos Currais porque vinham tocando o gado, nos séculos 17 e 18, à beira do São Francisco”, recorda o pesquisador Luiz César Pereira, coordenador do Centro de Conservação e Manejo de Fauna da Caatinga (Cemafauna), ligado à Universidade do Vale do São Francisco (Univasf). A universidade é a principal encarregada de atuar na mitigação dos impactos, também por meio do Núcleo de Ecologia e Monitoramento Ambiental (Nema).
“O gado chegava ali em Cabrobó (PE) e ia impactando o solo. Depois, com o tempo, sai o gado – o ‘pé duro’ como a gente chamava – e entra uma nova forma de pecuária que se adapta à caatinga, que são os ovinos e caprinos, que também trazem impacto, pois se alimentam da caatinga.”
Fonte de renda e esperança de prosperidade, o Rio São Francisco ainda hoje é também foco de tensões. A competição pela água contrapõe grandes e pequenos produtores agropecuários, indústrias, comunidades ribeirinhas, pescadores, mineradores, governos, cidades e quatro barragens de usinas hidrelétricas (Três Marias, Sobradinho, Itaparica e Paulo Afonso). Alguns recebem mais água do que outros, alguns pagam mais pela água do que outros e alguns são mais beneficiados ou prejudicados pela transposição do que outros.
A soma de tantas atividades em torno do São Francisco impacta as bacias ligadas a ele desde os lençóis freáticos e nascentes, onde já há relatos de água “funda”, ou seja, é preciso perfurar mais para chegar até ela. Isso ocorre também nos afluentes, os rios que alimentam o São Francisco. As barragens das hidrelétricas alagaram grandes áreas e, hoje, também controlam a vazão do rio.
INVASÃO DO MAR: Estudos mostram que, como o rio chega fraco ao mar, a água salgada já começa a invadir o São Francisco na foz – entre Sergipe e Alagoas. “O mar está entrando 40 km rio adentro. Os peixes desapareceram. Na verdade, você já encontra peixes do mar a 200 km rio acima”, conta José Alves Siqueira, professor da Univasf e coordenador do Centro de Referência para Recuperação de Áreas Degradadas (Crad).
Restam incertezas, entretanto, sobre até que ponto a transposição causa ou amplia esses danos ambientais.
A transposição se somou, portanto, a um cenário ambiental já complicado. “O rio já sofreu muitas intervenções ao longo os últimos 40, 50 anos”, diz César Nunes de Castro, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
“Reservatórios, hidrelétricas, principalmente do médio São Francisco até a foz do rio: tudo isso alterou totalmente o seu regime normal.”
Com a transposição, a água do rio é levada para lugares onde, antes, não chegava. A obra cria dois sistemas independentes de captação de água: são os chamados Eixo Norte e Eixo Leste.
Em nota enviada ao G1, o Ministério do Desenvolvimento Regional, responsável pelas obras, afirma que, ao todo, já foram investidos R$ 10,7 bilhões na transposição. “Com os serviços remanescentes e complementares, a previsão é que as obras sejam concluídas com investimento final de R$ 12 bilhões”, acrescenta.
O RIO SÃO FRANCISCO JÁ NÃO BATE NO MEIO DO MAR:
O impacto mais óbvio da transposição é, justamente, a retirada de água de um rio já bastante sobrecarregado, segundo Castro. “Antes das barragens, na década de 1970, a vazão do rio ao longo do ano mudava de forma mais considerável. Tinha os períodos de cheia, com inundação das margens, e, quando baixava, tinha a agricultura de várzea”, recorda o especialista em políticas públicas.
Por causa das hidrelétricas, o São Francisco já tem o seu fluxo limitado, pois elas retêm a água para poder passar com força pelas turbinas. “Principalmente Sobradinho e Três Marias seguram a vazão do rio. É uma água controlada”, diz Pereira, do Cemafauna.
Isso faz com que as comunidades que estão depois das usinas dependam totalmente do volume de água liberado por elas. José Alves Siqueira avalia que muitos dos impactos da transposição são silenciosos. “É preciso ter uma visão sistêmica do São Francisco. Priorizar as áreas de conservação da caatinga, diminuir o impacto da desertificação, garantindo a preservação da água e da biodiversidade”, diz o pesquisador.