por Cláudia Collucci e Flávia Faria | Folhapress
Há um ano a dona de casa Ana Rosa Moura, 38, tenta agendar uma consulta de rotina com um ginecologista e um clínico-geral na UBS Ladeira Rosa, na zona norte de São Paulo. Também não teve sucesso em agendar com o clínico-geral.
“Não fiz o papanicolaou no ano passado. Estou com dor de estômago que não passa há meses. Já me falaram para ir lá e tentar um encaixe, mas eu tenho um bebê de um ano e dois meses, não tenho com quem deixar”, diz ela.
A doméstica Luzineide França Andrade, 47, vive o mesmo drama, mas triplicado. Em fevereiro de 2020, ela se consultou com um clínico-geral, e as duas filhas, com o pediatra. Fizeram exames laboratoriais e desde então não conseguem nem marcar o retorno para saber os resultados dos testes.
“Já mandei ‘zap’, já entrei no aplicativo, já fui pessoalmente e ninguém resolve nada”, diz. Sua maior preocupação é com a filha menor, Maria Luiza, 9, que precisa de um encaminhamento para o oftalmologista. “A professora já disse que ela não enxerga a lousa, por isso tem dificuldade de aprender.”
Os dois casos exemplificam o cenário de desassistência vivido na atenção primária, porta de entrada no SUS. A área já vinha sofrendo reduções importantes e, com pandemia, sofreu grande impacto. O número de consultas caiu quase pela metade (49%) em 2020.
A redução chega a 69% em abril e maio do ano passado, no início da pandemia, segundo dados do Datasus, do Ministério da Saúde. A comparação leva em conta a média de procedimentos realizados de 2017 a 2019.
“Essa queda de 50% na atenção primária é muito impactante. A pandemia vem agravando as fragilidades do SUS”, diz o médico Adriano Massuda, professor da FGV.
Segundo ele, a atenção primária já vinha num processo de enfraquecimento. “A cobertura vacinal já vinha decrescendo desde 2015. Depois do fim do Mais Médicos, o número de consultas teve uma queda muito importante. A cobertura pré-natal, os exames citopatológicos, tudo já vinha caindo pré pandemia.”
As políticas de austeridade fiscal adotadas desde o governo de Michel Temer (MDB), como a Emenda Constitucional 95, que instituiu o teto de gastos, e a mudança do modelo de financiamento pelo Ministério da Saúde estão entre as causas desse enfraquecimento, segundo Massuda.
“A resposta brasileira à pandemia foi muito diferenciada na atenção primária. Tivemos municípios fazendo diagnóstico precoce, rastreamento de contatos, mas foram exceções. Muitos fecharam serviços. Não houve orientação técnica do Ministério da Saúde.”
Com isso, houve redução de procedimentos preventivos e necessidades não atendidas. “Isso tudo está virando uma bola de neve. Muitos problemas que poderiam ser prevenidos e tratados na atenção primária vão se agravar, aumentando a pressão sobre os outros níveis do sistema”, reforça.
Massuda diz que o país ainda não tem um plano de retomada na saúde pública e que o foco de muitos gestores municipais e estaduais da saúde ainda está no manejo da pandemia.
“O que vamos fazer com essa demanda reprimida? Precisamos de um diagnóstico disso até porque haverá consequências no financiamento do SUS. O cenário é bastante explosivo.”
Segundo o médico de família Fabiano Guimarães, diretor da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, os locais com uma atenção primária mais forte conseguiram se organizar mais rapidamente, tanto na criação de fluxos diferenciados de pacientes com Covid e sem Covid quanto no seguimento dos pacientes crônicos.
Em Belo Horizonte (MG), por exemplo, foram criadas listas de pacientes hipertensos, diabéticos e de gestantes que seriam monitorados pelas equipes de saúde da família.
No entanto, durante a pandemia muitos municípios fecharam unidades e deslocaram os agentes de saúde das suas comunidades para organizar filas de pacientes nos hospitais e nos centros que atendem Covid.
“Já está acontecendo a piora dos hipertensos, dos diabéticos. O cenário é de descompensação de casos que estavam sob controle antes da pandemia”, diz Guimarães.
Segundo o médico, os pacientes alegam que deixaram de frequentar as unidades por medo de contrair o coronavírus. “Mas há também os que dizem que não foram porque tinham pena dos profissionais da saúde que estavam trabalhando muito na pandemia.”
Para a médica Ligia Giovanella, pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Fiocruz), houve uma queda real de consultas, mas, ao mesmo tempo, muitos pacientes foram atendidos virtualmente e isso não ficou computado no sistema.
Ela é coautora de um estudo que mostrou que 70% dos profissionais de saúde da atenção primária utilizaram seus próprios celulares para acompanhar pacientes a distância. “O sistema de informação dos prontuários não tem campo para esse atendimento”, diz.
Já as consultas e procedimentos com especialistas e as cirurgias eletivas foram praticamente paralisadas no ano passado e em muitos locais ainda não voltaram ao ritmo anterior.
“Já existia um gargalo muito importante e isso só piorou. Ainda nem conseguimos medir a magnitude dessas filas de espera”, diz.
Giovanella lembra que, além da demanda reprimida, o sistema de saúde enfrentará novas necessidades em saúde criadas pela pandemia, como os pacientes sequelados pela Covid-19, os enlutados e os que passaram a sofrer de alguma doença mental.
Isso tudo com um orçamento do Ministério da Saúde mais enxuto em relação a 2020, já que os aportes extras aprovados no ano passado para o enfrentamento da pandemia não foram incorporados neste ano.
Outro lado Em nota, a Secretaria Municipal da Saúde, informa que. com a pandemia, os atendimentos eletivos foram reduzidos, centrando-se na assistência a pacientes com doenças crônicas, gestantes e crianças e no atendimento aos sintomáticos respiratórios.
“A prioridade do atendimento da ginecologia no momento é para gestantes. Os casos são avaliados individualmente após análise no acolhimento da enfermagem. Em relação ao atendimento da clínica médica, o processo é o mesmo, com prioridade para o atendimento das pessoas com Covid-19.”
Em relação à queixa de Luzinete França Andrade sobre a consulta com oftalmologista, diz que a “paciente precisa passar em consulta com o médico clínico e, se necessário, ter um encaminhamento para ser agendado em um equipamento que ofereça essa especialidade.” A paciente diz que já fez isso ano passado e que não consegue o encaminhamento.
Segundo a secretaria, as demais consultas e procedimentos serão retomados de acordo com o cenário da pandemia. “Essa medida é necessária, pois o agendamento dos serviços impacta diretamente no planejamento das equipes para organizar suas agendas e poder dar o melhor atendimento e assistência às procuras espontâneas.”