O que são crimes de guerra e por que Putin é acusado deles na Ucrânia?

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por Mayara Paixão | Folhapress

Genocídio. Era essa figura jurídica conhecida no direito internacional que Vladimir Putin costumava evocar ao falar da ação da Ucrânia contra a população étnica russa concentrada na porção leste do território, o Donbass. Ela também foi uma das justificativas usadas pelo presidente russo para dar início à ação contra o vizinho.

A tipificação é uma para as quais cortes mundiais estão atentas. Cabe ao Tribunal Penal Internacional e à Corte Internacional de Justiça avaliar se indivíduos e Estados praticaram esse e outros tipos de crime, como os de guerra, de agressão e contra a humanidade.

Genocídio. É a acusação que Volodimir Zelenski fez contra a Rússia, ao visitar nesta segunda-feira (4) a cidade de Butcha, onde centenas de corpos de civis foram encontrados nas ruas e em valas comuns no último fim de semana após a retirada de tropas de Moscou.

No front jurídico, a alegação inicial de Putin tem sido contrariada pelas instâncias que ele de certa forma legitimou em seu discurso ao acusar a ação ucraniana. E, num movimento contrário ao que pleiteava o líder do Kremlin, os tribunais agora se voltam para analisar possíveis crimes cometidos no conflito pelo Estado russo e por autoridades do país.

A Corte Internacional de Justiça já invalidou o argumento de genocídio contra russos na Ucrânia e ordenou que Putin interrompa a guerra —decisão ignorada. Já o Tribunal Penal Internacional abriu uma investigação sobre o que ocorre no país do Leste Europeu, ainda que fazê-la desaguar em um processo possa levar anos.

Rússia e Ucrânia não são signatárias do Estatuto de Roma, fundador do TPI, mas o país de Volodimir Zelenski aceitou que o tribunal atue ali. A abertura da investigação é um raro episódio de mobilização internacional —41 países pediram que a instituição organizasse uma missão para coletar evidências de crimes cometidos no conflito.

Aos especialistas impressionou a celeridade. “Esse é um caso inédito de coleta de provas pelo tribunal ainda durante o desenrolar do conflito”, diz Cláudia Perrone, professora de direito internacional da USP.

E a investigação olhará não apenas para o que acontece agora, mas sim desde 2014, quando houve a anexação da península da Crimeia pela Rússia e teve início o conflito contínuo no Donbass —dando força à visão de que a guerra pode até ter estourado agora, mas gera custos humanos há ao menos oito anos.

A pressão, já grande, escalou no último fim de semana, quando a presença da imprensa profissional em Butcha permitiu o registro de corpos espalhados pelas ruas. O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, foi um dos líderes a mais uma vez acusar Putin de crimes de guerra por causa do episódio.

Em pauta nas cortes internacionais estão dois possíveis crimes: o de agressão e o de guerra. O primeiro refere-se ao que Moscou fez em 24 de fevereiro, quando invadiu militarmente o território de um Estado soberano, a Ucrânia. Bloquear portos ou a saída para o mar de um país também é considerado crime de agressão —algo que, afirmam autoridades de Kiev, os russos também têm tentado fazer.

Já os crimes de guerra abarcam um imenso guarda-chuva. Estão nesse grupo, em especial, os ataques a civis, trabalhadores da área da saúde e equipes que prestam apoio humanitário. Bombardear cidades ou vilas que não sejam essencialmente polos de agrupamento militar também está na lista, bem como o uso de armas biológicas e químicas.

A base para o que configura ou não crime de guerra está nas Convenções de Genebra, redigidas ao longo do século 20. Os principais exemplos nelas listados podem dialogar mais com supostas práticas cometidas por tropas russas na guerra, mas também é verdade que as autoridades estão de olho no que o Exército ucraniano tem feito.

A Anistia Internacional já instou Kiev a respeitar prisioneiros de guerra. Afinal, para o TPI, privar intencionalmente um detido de um julgamento justo, torturá-lo, expô-lo publicamente ou obrigá-lo a servir no Exército também são práticas consideradas crimes de guerra.

À reportagem a diretora da Anistia para Europa Oriental e Ásia Central, Marie Struthers, explica que a organização tem trabalhado na coleta de provas sobre crimes de guerra. O processo envolve analistas militares e autenticação de vídeos. Ela exemplifica com um ataque a um hospital no leste ucraniano, em meados de março, que resultou na morte de uma criança e dois adultos: ao menos 60 vídeos, de diferentes ângulos, foram analisados e comprovaram a autenticidade da denúncia.

“Existe um padrão militar russo que temos documentado ao longo dos últimos dez anos e visto agora na Ucrânia”, diz. “A conduta militar é muito similar, com ataques a civis, escolas e hospitais, como vimos também na guerra da Síria [onde a Rússia apoia o regime de Bashar Al Assad], na Tchetchênia e na Geórgia.” A Anistia pleiteia que sejam julgados não apenas o crime de guerra, mas também o de agressão.Um projeto da agência de notícias Associated Press em parceria com o Frontline, ligado à emissora americana PBS até aqui, verificou 34 ataques a hospitais, ambulâncias e trabalhadores da saúde na guerra.

A coleta de evidências sobre possíveis crimes também permite observar uma característica marcante do conflito: o enorme volume de cenas registradas por moradores locais e publicadas em redes sociais.

“Esse fator será um verdadeiro divisor de águas na maneira como os casos são investigados e processados”, disse à revista Harvard Law Today Alex Whiting, professor visitante de Harvard, membro do TPI e procurador-adjunto do tribunal que julga crimes cometidos na Guerra de Kosovo.

É claro que é preciso extrema cautela —afinal, muitos dos conteúdos podem ser falsificados em meio a uma guerra feita também de desinformação—, mas Whiting é otimista. “Há cada vez mais discussão sobre como socorristas e locais podem ajudar a preservar as evidências, e uma das formas é usar o celular para fazer vídeos.”

O desenrolar das investigações internacionais, porém, tende a não ser tão célere quanto foi o início desse processo, explicam os especialistas. A Rússia poderia, por exemplo, ser ordenada a pagar uma indenização compensatória à Ucrânia pela Corte Internacional de Justiça. Já Putin e outras autoridades do país, civis e militares, podem enfrentar julgamento no TPI e serem condenados à prisão.

A instância, no entanto, só julga indivíduos que estão presentes no tribunal. Até aqui, nos 31 casos analisados pelo TPI, apenas quatro réus foram condenados —e receberam sentenças de 9 a 14 anos de prisão. Outros vários receberam mandados de prisão, mas muitos estão foragidos. É aqui que, de acordo com Cláudia Perrone, professora da USP, pode-se criar um constrangimento para Putin.

Caso a investigação decida que o líder do Kremlin cometeu crimes, sejam os de guerra ou de agressão, e um mandado de prisão seja expedido, Putin pode ter problemas ao viajar para países signatários do Estatuto de Roma —o Brasil é um deles.

Essas nações, ainda que existam divergências, seriam instadas a entregá-lo ao TPI. “O tempo pode ser um inimigo nesses casos internacionais, mas um mandado de prisão faz com que a vida de um líder mude; é inevitável.”