A decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de utilizar a legislação de crimes de racismo para punir homofobia e transfobia deve ter impacto também no futebol. O STJD (Superior Tribunal de Justiça Desportiva) estuda medidas e punições aos clubes, enquanto autoridades preparam estudos sobre a mudança na lei.
Presidente do STJD, Paulo César Salomão Filho afirmou que ofícios serão enviados a clubes e árbitros sobre as novas normas. Entre elas, a criação de campanhas junto aos torcedores. “Antes de ter um caráter punitivo, o tribunal tem um caráter pedagógico. No caso dos árbitros, a gente vai oficiar para que coloquem na súmula as manifestações homofóbicas considerando o número de torcedores envolvidos”.
Além das medidas pedagógicas, o STJD não descarta a possibilidade de punir os clubes com multas ou até perda de pontos no caso de manifestações homofóbicas no estádio. Desde a Copa do Mundo de 2014, aumentou o número de casos em que gritos de “bicha” são ouvidos cada vez que o goleiro adversário cobra um tiro de meta.
“O código fala nessa possibilidade (perda de pontos). Vai depender muito da interpretação do tribunal sobre a matéria. Como é uma matéria nova, não posso dar uma certeza sobre o que vai ser entendido pelo tribunal. Em tese, pode punir”, afirmou.
As punições podem acontecer mesmo que o alvo dos gritos diga que não se sentiu incomodado com as manifestações. “Vai depender de cada caso concreto e da interpretação do tribunal. Em tese, até pela jurisprudência da Fifa, o tribunal pode punir, ainda que o diretamente envolvido não se sinta envolvido. Ali é uma questão mais de postura do torcedor do que de ofensa direta a um determinado envolvido no espetáculo.”
Além do STJD, promotores do Jecrim (Juizado Especial Criminal), que cuida de processos relacionados ao futebol na Justiça paulista, já discutem sobre as possibilidades abertas pela decisão do STF. Estudos técnicos devem ser publicados após a divulgação do acórdão. Entre os promotores, há o sentimento de que o STF mostrou a importância que o Estado brasileiro vai conferir ao combate à homofobia.
A decisão do STF passa a valer a partir da publicação da ata da reunião do plenário, na qual constarão os votos de cada ministro. Mas as instituições vão esperar a publicação do acórdão da votação, uma espécie de resumo feito pelos ministros, que vai ditar a jurisprudência para os casos reais. Isso deve acontecer em até 60 dias.
O julgamento no Supremo aconteceu após ações apresentadas pelo Cidadania (antigo PPS) e pela ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros). As partes afirmaram que a discriminação na sociedade tem impedido a população LGBT de viver livremente o exercício de todos os seus direitos.
Autor de ambas as ações, o advogado Paulo Iotti vê na decisão do STF uma chance a mais de punir quem grita “bicha” nos estádios. “Eu entendo que é um grito que passa a ser passível de punição criminal também, apesar de isso ser mais difícil de acontecer, porque você tem que identificar quem gritou. Sem isso, a torcida e o time não terão como serem punidos criminalmente, mas ainda poderiam ser punidos civilmente, com indenização, sanções desportivas na Justiça Desportiva etc.”.
No caso de o torcedor responsável pelo grito ser identificado, a nova lei abriria a possibilidade para ele responder por injúria racial. Isso seria semelhante ao caso envolvendo o goleiro Aranha, na partida entre Grêmio e Santos, pela Copa do Brasil, em 2014. Na ocasião, a torcedora Patrícia Moreira foi flagrada pelas câmeras de TV chamando o jogador de “macaco”. Ela e outros três torcedores -Fernando Ascal, Éder Braga e Rodrigo Rychter- foram punidos e converteram suas penas para comparecer a uma delegacia uma hora antes e sair uma hora depois dos jogos do clube gaúcho. O Grêmio acabou excluído da Copa do Brasil.
“Se você conseguir identificar torcedores gritando ‘bicha’ para ofender, então, em princípio, é passível da mesma punição (do caso do Grêmio). Há resistência da Justiça penal de aplicar a lei em caso de racismo, inclusive punir discursos opressores contra pessoas negras. Mas, em princípio, entendo que passam a ser discursos de ódio criminosos esses discursos homofóbicos e transfóbicos nos estádios”, prossegue Iotti.
A Defensoria Pública de São Paulo, que já processou e conseguiu a condenação da organizada corintiana Camisa 12 por homofobia, vê nos votos dos ministros do Supremo uma nova possibilidade de punição à prática. Em 2016, os defensores usaram a lei estadual 10.948/2001 para multar, em um processo administrativo, torcedores que protestaram contra um selinho entre o atacante Emerson Sheik e um amigo.
“Temos trabalhado com a responsabilização na via civil e na via administrativa, com penalidades a pessoas físicas e jurídicas”, explica Isadora Brandão Araujo da Silva, defensora pública e coordenadora do Núcleo Especializado de Defesa da Diversidade e da Igualdade Racial da Defensoria Pública de São Paulo, “Agora temos uma terceira via de responsabilização, a penal, que pode resultar em pena privativa de liberdade. Precisamos ter acesso ao acórdão para saber em que tipo penal as ações poderão ser enquadradas. A rigor, o direito penal trabalha com responsabilidade subjetiva, exige a demonstração de dolo, tem que ficar provado que o sujeito teve a consciência de ato ilícito, tem que analisar a culpa.”
A aprovação no STF foi feita por 8 votos a 3. Votaram a favor da decisão os ministros Cármen Lúcia, Celso de Mello, Luis Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Luiz Fux e Gilmar Mendes. Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio Mello e Dias Toffoli votaram contra.
Além da decisão de tipificar os crimes de homofobia na mesma legislação do racismo, a proposta aprovada pelo STF prevê, ainda, que o Congresso crie leis específicas para o tema.