Idiana Tomazelli / Folhapress
Após décadas de fracassos, a Câmara dos Deputados tenta nesta semana avançar na discussão da reforma tributária com a votação de uma PEC (proposta de emenda à Constituição) que unifica cinco tributos sobre consumo.
Com décadas de atraso, a mudança pode colocar o Brasil no mapa dos países que cobram um IVA (Imposto sobre Valor Agregado), reduzindo a burocracia para as empresas e abrindo portas para o ingresso de maiores investimentos internacionais.
A sensação entre membros do governo, parlamentares e especialistas é de que nunca houve chance melhor. Não tanto pela anuência dos atores envolvidos, mas pelo consenso de que o atual sistema está falido e precisa ser abandonado.
O desenho em vigor começou a ser estruturado em 1965, quando uma emenda constitucional criou o Sistema Tributário Nacional e instituiu a base de alguns dos tributos em vigência até hoje, como o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), o ICM (Imposto sobre Circulação de Mercadorias, que depois veio a ganhar o S de serviços) e o ISS (Imposto sobre Serviços).
A descentralização da cobrança, com segregação de atividades econômicas em diferentes bases de tributação e distribuição de competências entre União, estados e municípios, é uma das principais características desse sistema. Outro princípio é o recolhimento dos tributos não só onde há o consumo (destino), mas também onde os bens são produzidos (origem).
A escolha acabou vinculando o Brasil a um modelo que já na década de 1960 se mostrava defasado, à medida que países da Europa iniciavam a migração para o IVA.
A França implementou seu imposto sobre consumo em 1954, inicialmente cobrado apenas sobre produtos. Os franceses incorporaram os serviços à base de cálculo do IVA em 1968. Um ano antes, em 1967, a Dinamarca implementou o primeiro IVA completo.
Hoje 174 países adotam o sistema IVA para tributar o consumo.
A legislação do PIS/Cofins, dois tributos que seriam substituídos pelo novo IVA, tem mais de 2.000 páginas, das quais 60 páginas são só de índice. É um emaranhado de regras, muitas vezes definidas conforme o setor ou tipo de produto, com regimes especiais que buscam aliviar a carga sobre determinado segmento com poder de pressão.
Na legislação do ICMS, o problema é ainda mais complexo. Em Minas Gerais, por exemplo, há 15 alíquotas, 41 hipóteses de crédito presumido, 61 situações de redução de base de cálculo, 82 de diferimento e ainda 233 isenções envolvendo milhares de itens. Somente o regulamento do imposto no estado tem cerca de 1.000 páginas, sem falar em instruções normativas, resoluções e portarias.
Como o ICMS é um imposto estadual, toda essa complexidade se multiplica por 27 –um regulamento para cada unidade da federação.
Como a cobrança do imposto é feita “por dentro”, embutida no preço antes mesmo de o produto chegar às gôndolas, os estados publicam a chamada pauta fiscal com uma aproximação do que seria o preço final para então conseguir cobrar o tributo na saída da fábrica. “Se a empresa vende sabonete, são muitos tipos, e a pauta fiscal muda a cada dois meses. E você precisa descobrir isso em 27 estados”, diz.
No caso dos combustíveis, a lei já diz que o tributo é devido no local de consumo, mas os estados querem cobrar na origem, onde o produto é refinado. Há um sistema elaborado exclusivamente para fazer o encontro de contas entre quem recolheu e quem tem direito sobre a receita, considerando uma pauta fiscal que muda a cada 15 dias. “São formas bizarras de tentar coordenar um sistema sem muita racionalidade”, critica Canado.
O ISS, por sua vez, tem regras próprias em cada um dos 5.570 municípios. Segundo ela, o Congresso tentou minimizar o caos tributário nessa seara por meio da lei complementar 116, que fixou uma lista dos serviços que os municípios podem tributar.
“É superdifícil você ver aquele serviço dentro da lista, a economia é cada vez mais complexa. Então agora a dificuldade é enquadrar o serviço, alguns podem acabar não sendo tributados. A gente vai fazendo puxadinho para tentar resolver o problema e só desloca o problema”, afirma.
A lógica de um IVA é totalmente diferente: tributar o consumo, independentemente do artigo adquirido (se produto ou serviço), e garantir que não haja cobrança de imposto sobre outro imposto.
Na elaboração da Constituição de 1988, os congressistas chegaram a debater uma proposta de adoção de um IVA, mas mesmo os estados que seriam beneficiados resistiram diante das incertezas sobre como se daria a arrecadação apenas no destino, num ambiente de pouca informatização e dificuldades para a fiscalização, explica Melina Rocha, consultora internacional de IVA.
Rocha escreveu sua tese de doutorado sobre o histórico das tentativas de reforma tributária no Brasil. Ela avalia que o contexto da proposta atual é “bem diferenciado” na comparação com tentativas anteriores. “Há uma conjunção de interesses convergentes em prol da reforma.”
Ela destaca que o governo Lula (PT) criou uma secretaria extraordinária da reforma tributária, comandada por Bernard Appy, um dos técnicos mais experientes e engajados na discussão, além de ter outros atores importantes em defesa da proposta, como o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) e os ministros Fernando Haddad (Fazenda) e Simone Tebet (Planejamento e Orçamento).
“Eles estão apoiando não só politicamente. O governo federal vai aportar recursos para um fundo de desenvolvimento regional e também outro fundo para compensar benefícios fiscais convalidados”, diz Rocha, ressaltando que a injeção de dinheiro federal sempre foi um ponto de entrave.
“Nós também vemos uma Câmara muito alinhada para aprovação, o relator [deputado] Aguinaldo Ribeiro, o [presidente da Câmara, Arthur] Lira querendo votar na próxima semana, e também alinhado com o Senado. É um clima de total apoio à reforma”, afirma.
O clima se distingue de tentativas anteriores. No governo FHC, a PEC (proposta de emenda à Constituição) 175/1995 resgatava pontos da proposta de IVA debatida na Constituinte e chegou a ter parecer aprovado em comissão especial na Câmara, em 1999. No entanto, em um contexto de crise econômica, a proposta perdeu apoio do próprio Executivo.
Lula 1 apresentou a PEC 233/2008, cuja formulação técnica era de Bernard Appy. O texto também foi aprovado na comissão, mas não passou disso e travou nas resistências do estado mais rico do país. “São Paulo foi o principal ‘veto player’ porque não aceitava o princípio do destino”, analisa Rocha.
O conflito federativo sempre é um dos pontos mais delicados. Com um modelo já sedimentado, embora complexo, os estados e municípios temem perder fontes de arrecadação.
Agora não é diferente. Embora a agenda da reforma seja prioritária para o governo, ainda há pontos de divergência.
Um dos principais é a criação de um Conselho Federativo para arrecadar a parcela do IBS (Imposto sobre Bens e Serviços) que caberá aos estados e municípios onde ocorreu o consumo. Na avaliação dos especialistas, esse desenho é crucial para garantir o repasse dos recursos, uma vez que o órgão será autônomo.
DIFERENTES GOVERNOS TENTARAM REFORMAR O SISTEMA TRIBUTÁRIO DESDE OS ANOS 1960
Regime Militar
1965
Emenda constitucional institui um Sistema Tributário Nacional, em substituição aos sistemas autônomos vigentes até então.
Reforma previu criação do IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados), do ICM (Imposto sobre Circulação de Mercadorias), transformado no atual ICMS, e do que é a base do ISS (Imposto sobre Serviços)
1966
Aprovação do Código Tributário Nacional, em vigência até hoje
1970
Governo cria contribuição para o PIS, de arrecadação federal.
Sarney
1988
Constituição promove mudanças no Sistema Tributário Nacional, mantendo cobrança descentralizada com ICMS e ISS.
Collor
1991
Lei complementar institui a Cofins, de arrecadação federal.
1992
É criada a “Comissão Executiva de Reforma Tributária”,mas não houve ambiente político para avanço.
FHC
1995
Governo apresenta a PEC 175, a partir de projeto desenvolvido pelo Ipea e encampado pelo Ministério do Planejamento. Em uma das versões, criava um IVA (Imposto sobre Valor Adicionado) de competência da União e dos Estados, e um IVV (Imposto sobre Vendas no Varejo).
1996
Governo cria, em outubro, a CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras) para financiar a saúde.
1998
Instituída lei conjunta de PIS/Cofins
1999
Comissão especial aprova relatório da PEC 175. O governo retirou o apoio político por temer perda de arrecadação.
2000
Comissão tripartite, com deputados, governo federal e estados, é criada, sem sucesso.
Lula 1 e 2
2003
Governo apresenta a PEC 41, que buscava, entre outros pontos, uniformizar a cobrança do ICMS. Foi transformada na emenda constitucional 42/2003, centrada em medidas como prorrogação da CPMF, ressarcimento aos estados pela Lei Kandir (que desonerou exportações de ICMS) e previsão da DRU (Desvinculação de Receitas da União).
2004
Governo apresenta PEC 255, em nova tentativa de reforma tributária. Proposta depois foi desmembrada nas PECs 285 e 293 – esta última serviu de base para a PEC 110/2019, protocolada no Senado a partir do trabalho do então deputado Luiz Carlos Hauly.
2007
Congresso derruba a CPMF.
2008
Governo Lula apresenta PEC 233, com extinção de cinco tributos, criação de um IVA federal, unificação da legislação do ICMS e desoneração da folha de salários. Bernard Appy era secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. Proposta não avançou.
Dilma
2013
Governo tenta avançar em proposta para reformar ICMS, mas esbarra em resistências de estados (principalmente São Paulo).
Temer
2017
Governo defende unificar legislação de PIS e Cofins, mas projeto não avança.
Congresso aprova lei complementar para convalidar benefícios fiscais do ICMS. Incentivos têm hoje manutenção garantida até 2032.
Bolsonaro
2019
Deputado Baleia Rossi apresenta PEC 45, cuja redação original propõe um IVA nacional no lugar de PIS/Cofins, IPI, ICMS e ISS. Texto, cuja formulação técnica foi de Bernard Appy, é uma das bases da discussão da reforma tributária atualmente.
Senado protocola PEC 110, baseada em texto de Luiz Carlos Hauly, cuja redação original prevê criar um IVA e um imposto seletivo em substituição a IPI, Pis/Cofins, IOF, salário educação, Cide, ICMS e ISS.
2020
Em meio à disputa por protagonismo na discussão da reforma tributária, Congresso institui comissão mista de deputados e senadores para elaborar parecer conjunto sobre PECs 45 e 110.
2021
Deputado Aguinaldo Ribeiro apresenta parecer da comissão mista da reforma tributária, mas proposta estaciona.
Lula 3
2023
Governo anuncia reforma tributária como uma de suas prioridades e cria Secretaria Extraordinária da Reforma Tributária, comandada por Bernard Appy.
Presidente da Câmara, Arthur Lira, cria grupo de trabalho, tendo como base as PECs 45 e 110 e o deputado Aguinaldo Ribeiro como relator.
Jun.2023
Aguinaldo Ribeiro apresenta novo substitutivo da reforma tributária, com IVA dual, alíquotas diferenciadas para algumas atividades e dois fundos – FDR (Fundo de Desenvolvimento Regional) e o Fundo de Convalidação de Benefícios Fiscais. Votação é prevista para início de julho.
Fontes: Observatório de Política Fiscal (a partir de dados da Receita Federal e do Tesouro Nacional), legislação federal, livro “Reforma tributária no Brasil; ideias interesses e instituições” (tese de doutorado de Melina Rocha), Câmara dos Deputados, Senado Federal e CNI (Confederação Nacional da Indústria).