Jornal Estado de Minas Foto Ilustrativa Revista Chico
Minas Gerais enfrenta uma das piores estiagens da história, mas a crise hídrica, que afeta o país como um todo, está longe de ser apenas um fenômeno pontual. O estado que já foi chamado de Caixa-d’água do Brasil está ficando cada vez mais seco, consequência da degradação ambiental e das mudanças climáticas.
De acordo com o MapBiomas Águas, a Bacia do Rio São Francisco, que nasce na Serra da Canastra, em Minas, e percorre cinco estados até encontrar o Oceano Atlântico, entre Alagoas e Sergipe, também sofreu diminuição global de 15% na área ocupada por suas águas.
A pesquisa aponta que o complexo teve perda de 125.369 hectares (ha) de superfície hídrica, saindo dos 832.115ha de 1990 para 706.746ha em 2020. Análise de dados de satélites mostra que, entre 1985 e 2020, as maiores bacias hidrográficas mineiras sofreram quedas acentuadas de superfícies de água.
Entre os principais rios, o único que aumentou em área no período avaliado foi o Jequitinhonha. Mas não por recuperação ambiental, e sim devido à ação humana, com a construção da hidrelétrica de Irapé, inaugurada em 2006.
Dados que mostram uma perda de 118 mil hectares de superfície de água em três décadas e meia em Minas – o equivalente a 605 vezes o espelho da Lagoa da Pampulha – fazem parte de estudos dos pesquisadores do MapBiomas, iniciativa que envolve organizações não governamentais, universidades e empresas de tecnologia.
O levantamento nacional aponta a perda de superfície de água em oito das 12 regiões hidrográficas brasileiras, com redução em 23 das 27 unidades da Federação e em todos os biomas.
Porém, em Minas, as perdas de superfície dos principais rios que nascem no estado são bem superiores à média de redução em nível nacional, de 15,7%. Segundo o estudo, a bacia hidrográfica mineiras com maior redução superficial no período analisado foi a do Rio Urucuia, com queda de 45%.
Retratado nas obras do escritor Guimarães Rosa, o curso deságua no Rio São Francisco, assim como o Rio Verde Grande, outro importante manancial do estado, que teve perda de superfície de água de 40%, ou o Paracatu, que encolheu em 25%.
O mesmo percentual de perda de água superficial ocorreu no Rio Doce, que nasce em Minas Gerais e segue em direção ao Espírito Santo, onde deságua no Oceano Atlântico, no município de Linhares.
Como agravante, esse manancial foi totalmente comprometido, até sua foz, pelo desastre do rompimento da barragem da Samarco em Mariana, em 2015.
MAIOR IMPACTO: Um dos pesquisadores do MapBiomas Água, o professor Luis Fernando Guedes Pinto, diretor de Conhecimento da Fundação SOS Mata Atlântica, lembra que, das 23 unidades da Federação que sofreram redução hídrica, Minas Gerais está entre as 10 que mais tiveram perdas nas últimas três décadas.
Ele salienta que o quadro gera maior apreensão pelo fato de o estado concentrar nascentes de bacias hidrográficas importantes, como as do São Francisco e do Doce.
O especialista aponta o desmatamento como um dos principais responsáveis pela queda na disponibilidade hídrica. “O fato de Minas Gerais ter mais nascentes significa que os efeitos (da perda de águas superficiais) são mais impactantes no estado.
Com a continuidade dos desmatamentos, a tendência é ter cada vez menos água, uma preocupação para o futuro. Isso acende uma luz amarela.”
Reportagens do Estado de Minas mostraram que no Norte do estado, dezenas de rios que fazem parte da Bacia do São Francisco, que há 30 anos eram perenes, tornaram-se intermitentes e estão completamente secos, assemelhando-se a estradas. É o caso do Rio das Pedras, no município de Glaucilândia.
Guedes Pinto ressalta que o cenário desolador exposto pelo EM vai ao encontro dos resultados do estudo, divulgado na semana passada.
“O MapBiomas relata exatamente isto: rios que existiam não existem mais ou têm cada vez menos água. Isso tem duas causas principais: o desmatamento e as mudanças climáticas, que vêm provocando secas cada vez mais extremas, mais longas e mais intensas, que diminuem a produção e a oferta de água”, descreve o pesquisador, acrescentando que a situação afeta regiões como a que abriga as nascentes do São Francisco.
O professor acrescenta que a devastação dos principais biomas do estado afeta diretamente a produção de água. “Minas Gerais já desmatou muito a mata atlântica e o cerrado. Isso tem uma consequência enorme sobre as nascentes e os rios. Quanto mais florestas, mais estável a oferta de água. Quanto mais desmatamento, maior prejuízo para a produção de águas”, explica.
Para conter o “esvaziamento” da caixa d’água do Brasil e recuperar o volume das bacias hidrográficas mineiras, o professor Luis Fernando Guedes Pinto destaca a necessidade de reflorestamento, sobretudo com o replantio em torno de nascentes de rios e córregos.
Ele destaca que é preciso também controle sobre usos múltiplos da água, incluindo a irrigação e a geração de energia elétrica, além de investimentos em saneamento básico.
ESCASSEZ: Segundo o estudo do MapBiomas que avaliou dados de satélite de 1985 a 2020, a superfície coberta por água do Brasil em 1991 era de 19,7 milhões de hectares. No ano passado, ela já havia sido reduzida para 16,6 milhões de hectares, área equivalente ao território do Acre ou quase quatro vezes o estado do Rio de Janeiro. A perda de 3,1 milhões de hectares em 30 anos (15,7%) equivale a mais de uma vez e meia a superfície de água de toda a Região Nordeste em 2020. No período avaliado, 70% dos municípios brasileiros tiveram perda de águas superficiais.
Para o ambientalista Apolo Heringer Lisboa, fundador do Manuelzão, projeto de recuperação da Bacia do Rio das Velhas, o período do estudo do MapBiomas que aponta redução nas águas superficiais no Brasil coincide com o “boom” de atividades de mineração e agronegócio. Ele aponta relação direta entre o aumento da exploração econômica e a redução da disponibilidade hídrica.
“O período avaliado pelo MapBiomas abrange o boom da nova economia brasileira, baseada na exportação de commodities, hoje sobretudo para atender ao mercado chinês, a nova grande potência mundial. O quadrilátero aquífero (e ferrífero-aurífero), onde se situam as cabeceiras dos rios das Velhas, Paraopeba e Doce, está sendo rápida e intensamente perfurado a grandes profundidades para extração de minério de ferro de elevada qualidade, em prejuízo da boa gestão dessas águas, que se tornou subsidiária”, afirma.
O especialista salienta, que entre outros impactos, a atividade minerária detona rochas e drena a água dos lençóis freáticos profundos, permitindo a mineração a seco e em algumas regiões o seu transporte por água em minerodutos.
“Esse vasto rebaixamento de lençóis que atinge toda a região das bacias do Velhas, Paraopeba e Doce impacta toda a Grande BH, que passou a ter graves problemas de abastecimento humano, e já compromete a sobrevivência dos rios enquanto ecossistemas de uso comum”, considera.
Apolo Heringer Lisboa afirma também que a explosão da exportação brasileira de matéria-prima gerou alterações no conceito de seca.
“As secas de há meio século eram dependentes da chuva. Hoje, pode haver seca em períodos próximos de muita chuva, pois se trata de seca subterrânea. A demanda colossal de exportação dessas commodities primárias e a licenciosidade do controle da gestão ambiental, que só tem olho para a arrecadação e os negócios político-empresariais, permitem o abuso da retirada de água dos rios e das águas subterrâneas em poços profundos. Ultrapassaram os níveis recomendados para cada ano pela ciência hidrológica”, opina.
No caso da Bacia do São Francisco, afirma, o Rio Urucuia, seu principal aquífero, perdeu a abundância existente até a metade do século 20, coincidindo com a destruição do cerrado para exploração, de onde provêm suas águas. Apolo enfatiza a necessidade de conciliar a atividade econômica com a preservação ambiental.
“Hoje, o desenvolvimento precisa ser regenerativo, na linha da renaturalização. O Brasil convive há 521 anos com atividades econômicas predatórias. Sem ecologizar a economia, aprendendo com a economia natural ou ecologia, caminhamos para o colapso ambiental que levará de roldão o futuro nacional”, alerta.
RIO DAS VELHAS: O Rio das Velhas, uma das principais fontes de abastecimento humano da Região Metropolitana de Belo Horizonte, é dos mananciais mais castigados em três décadas, aponta estudo do MapBiomas. A redução de 40% da superfície de águas do leito é considerada “alarmante” pelo professor e pesquisador Luis Fernando Guedes Pinto, participante da pesquisa.
A queda na vazão é verificada ao longo de toda a extensão da bacia, de 806 quilômetros, da nascente, no município de Ouro Preto, até a foz, no Rio São Francisco, em Várzea da Palma, Norte de Minas, passando pelos territórios de 51 municípios.
“A Bacia do Rio das Velhas fica em uma região que sofre intenso desmatamento e isso está relacionado com a oferta de água”, considera o pesquisador. Ele lembra ainda que o fato de o rio atravessar áreas urbanas e ser usado para o abastecimento da Grande BH também contribui para a retirada de água da bacia e redução do volume que chega até a foz.
A presidente do Comitê da Bacia do Rio das Velhas, Poliana Valgas, afirma que, embora ainda não tenha avaliado o documento do MapBiomas, já tinha alertado sobre a diminuição das águas superficiais na bacia.
“São vários fatores combinados que, principalmente nos períodos de estiagem, ocasionam vazões extremamente baixas. Tudo isso demonstra desequilíbrio e perda de resiliência”, observa.
Segundo ela, entre as causas do quadro estão os baixos índices de chuva, mau uso e ocupação do solo, com destaque para atividades extrativas e expansão imobiliária em áreas de produção de água e recarga do sistema, a crescente demanda pelo uso da água, assim como perdas nos sistemas de abastecimento públicos.
A situação mais crítica está no Alto Rio das Velhas, região da cabeceira e da produção de água, “por sinal, onde ocorre a captação para abastecimento de metade da Região Metropolitana de BH”.
Entre as intervenções para salvar o rio, Poliana Valgas cobra a adoção de “medidas de médio e curto prazos, como a efetivação de um programa estruturante de revitalização da bacia, a definição de políticas públicas de preservação de áreas de produção de água e de uso e ocupação do solo nos municípios”.
Ela cita a recuperação de áreas degradadas e proteção de nascentes, a ampliação e melhoria no tratamento de esgotos das cidades, o uso mais racional da água e investimentos em tecnologia como o reúso e a captação de águas de chuva.
A degradação e a diminuição ano a ano do volume do Rio das Velhas são testemunhadas pelos moradores de suas margens. O pedreiro Edmilson Alves da Silva Pereira, de 42 anos, da localidade de Buriti da Porta, na zona rural de Várzea da Palma, cresceu enquanto o leito só baixava.
“Desde quando era garoto até hoje, o volume do rio diminuiu demais. Tinha um braço onde a gente atravessava com água pela cintura. Hoje, o nível não passa dos pés da gente”, conta.
Vilma Martins Veloso, de 57, presidente da colônia de pescadores do distrito de Barra do Guaicuí, perto do ponto onde o Velhas encontra o Rio São Francisco, se entristece com o que vê olhando para o leito. “Há 30 anos, o rio era uma fartura de água. Hoje, a gente fica triste de ver que está cada vez mais vazio, assoreado e poluído. Quando chove, o rio enche, mas rapidamente a água diminui”, lamenta.
A colônia tem 125 associados, que buscam sustento no São Francisco (a pesca foi proibida no Rio das Velhas, considerado “berçário” dos peixes). Com a degradação, eles também sofrem com diminuição dos cardumes.