Correntina parou para dizer não ao agronegócio predador que seca rios, toma terras e ainda tem apoio do governo, da Assembleia Legislativa, do TJB e do Inema, que libera a captação de águas em prejuízo da natureza e da vida humana.
As pessoas que fizeram o protesto contra o que o próprio Ibama (Escritório Regional de Barreiras) considera um crime ambiental, residem ao longo do rio Arrojado e nos povoados de Praia, Arrogeando e São Manoel e dependem do rio para sobreviver. Elas denunciam que o nível do rio baixa quando os 32 pivôs de captação e as bombas de irrigação das fazendas são ligados. O Arrojado faz parte da Bacia do Rio Corrente, composta por 15 rios, seis riachos e cinco córregos, que alimentam o Rio São Francisco.
A Regional Bahia da Comissão Pastoral da Terra confirma o que dizem os manifestantes. Em nota intitulada “Em Defesa das Águas” relata que o Inema concedeu à Fazenda Igarashi o direito de retirar do Rio Arrojado uma vazão de 182.203 metros cúbicos por dia, durante 14 horas por dia, para a irrigação de 2.539,21 hectares. E continua a nota: este volume de água retirada equivale a mais de 106 milhões de litros diários, suficientes para abastecer por dia mais de 6,6 mil cisternas domésticas de 16 mil litros na região do semiárido. Agrava-se a situação ao se considerar a crise hídrica do Rio São Francisco, quando neste momento a barragem de Sobradinho, considerada o “coração artificial” do Rio, encontra-se com o volume útil de 2,84 %”.
A Pastoral da Terra complementa que “a água consumida pela população de Correntina – aproximadamente 3 milhões de litros por dia, equivale a apenas 2,8% da vazão retirada pela referida fazenda do Rio Arrojado”.
Gente de todo Oeste se rebela em defesa dos seus rios e surpreende o Governo da Bahia.
Galpões queimados na fazenda que se alimenta das águas dos rios enquanto seca as torneiras da cidade.
Os conflitos ocorridos em Correntina com invasão da Fazenda Igarashi por pequenos agricultores e a manifestação de milhares de pessoas que chegaram de vários municípios do Oeste da Bahia para ocupar em passeata todas as ruas da cidade, em protesto contra a apropriação dos seus rios por grandes grupos do agronegócio e pela política cartorial agrícola do Governo do Estado, são fatos que envolvem uma tragédia anunciada.
Desde 2001, a odisseia dos pequenos agricultores do Cerrado tem sido marcada por protestos. Há inúmeros registros sinalizando para a tendência crescente de conflitos na região, mas tais alertas não foram percebidos ou não chegaram a sensibilizar o poder público.
Mesmo agora, diante da radical indignação das pessoas que invadiram e destruíram a Fazenda Igarashi, por se verem sem o acesso à água, desviada dos seus rios, a reação do Governo do Estado foi de criminalizar os rebelados como “um bando” e exigir da Polícia que descubra “quem os financiou para tal ação”. Federações da Indústria, Agricultura e Comércio, o secretário da Agricultura, Vitor Bonfim, o secretário do Meio Ambiente, Geraldo Reis, e a diretora-geral do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema), Márcia Telles, além da imprensa, também criminalizaram a reação desesperada.
Rui na Governadoria com o agronegócio: pediu ”apuração rigorosa” da reação indignada dos ribeirinhos, que perdem suas águas na luta insana contra o poder do agronegócio no oeste baiano.
O Governo foi rápido no gatilho. Na segunda-feira, dia 6, Rui Costa reuniu na Governadoria a fina flor do agronegócio. Disse à Associação dos Produtores de Café da Bahia (Assocafé), Associação de Agricultores e Irrigantes da Bahia (Aiba), Associação Baiana de Produtores de Algodão (Abapa), Associação dos Produtores de Soja do Brasil (Aprosoja), Sindicato dos Produtores Rurais de Barreiras (SPRB), Sindicato dos Produtores Rurais de Luís Eduardo Magalhães (SPRLEM) e da Federação da Agricultura e Pecuária da Bahia (Faeb) que a Secretaria da Segurança Pública iria apurar rigorosamente as invasões de terras ocorridas no oeste da Bahia e reforçar policiamento na região.
O secretário da Segurança Pública, Maurício Barbosa complementou: “ A Polícia Militar se fez presente desde o primeiro momento. Agora, estamos reforçando as estruturas de segurança, tanto da Polícia Militar, como já fizemos com o envio de tropas especializadas, como também enviando reforços para a Polícia Civil, que ficará à frente das investigações. Equipes de inteligência da secretaria também estão envolvidas na operação”. E mais: “a prioridade é evitar novas invasões e também identificar quais foram as pessoas ou grupos que financiaram a depredação de um patrimônio privado e de atentado às pessoas que estavam trabalhando”.
Como o conflito começou.
Era uma vez um canal…
Moradores abraçam o rio e dão alerta sobre o crime que se comete no oeste.
Há poucos anos, um enorme canal foi construído para desviar as águas do Arrojado para duas fazendas visando a criação de carpas e plantio de café. Com 9 km de extensão e 10 metros de largura, a obra, sem licenciamento, em APP – Área de Proteção Ambiental Permanente, somente após concluída, veio a ser interditada pelo Ibama. Os proprietários – Vagner Rossi e Nair Jacó – foram multados, em R$ 180 mil e R$ 80 mil, respectivamente. Mas, evidentemente, recorreram e o processo está parado na Justiça. O estrago, no entanto, é irreversível. Para os mais de cinco mil produtores rurais, o Ibama conta com apenas três fiscais.
Para piorar, os dois fazendeiros construíram uma barragem que permite o desvio do rio. Com isso, no período das secas, como a vivida agora, compromete, rio abaixo, o abastecimento de centenas de famílias ribeirinhas que utilizavam o rio para irrigar suas lavouras. O prejuízo é total, gerando fome e sede para aquelas comunidades, além de provocar o assoreamento do Arrojado e devastar a vegetação e a fauna fluvial.
Rio Arrojado, recém-nascido, apunhalado no berço
Em 2009, durante reportagem para o Globo Rural, o repórter Ivaci Matias ficou tão impactado com a devastação do Rio Arrojado, com nascente em Goiás, na fronteira com a Bahia, que construiu a imagem da tragédia: “É como se o recém-nascido fosse apunhalado no berço”. Os oito afluentes já secaram, estão mortos.
O Oeste da Bahia é reconhecido pela riqueza do bioma Cerrado e pelo potencial de abastecimento de água devido à sobreposição com as bacias hidrográficas da margem esquerda do rio São Francisco. Desde os anos 80, contudo, somente em Correntina, nada menos que 17 riachos perenes deixaram de existir.
Correntina, com pouco mais de 33 mil habitantes tem diversas manifestações culturais. Entre elas, se destaca a das carpideiras que participam de encenações a chorar a morte dos rios.
O desastre ambiental é ainda mais apavorante quando se verifica que o Cerrado tem apresentado níveis crescentes de emissões de gases de efeito estufa devido ao desmatamento nas últimas décadas. Em 1990, 189 milhões de toneladas de CO2 foram lançadas na atmosfera em função da supressão da vegetação. Em 2005, as emissões alcançaram 379 milhões de toneladas.
Além da crescente preocupação com a perda de biodiversidade e da sua importância para os recursos hídricos em escala nacional, o controle das emissões de carbono no Cerrado levou o governo brasileiro a assumir, durante a 15ª Conferência das Partes, realizada em dezembro de 2009, o compromisso de reduzir em pelo menos 40% as emissões provenientes do desmatamento do Cerrado prospectadas até 2020.
O certo é que o Cerrado ganha, a cada dia, um cenário de caatinga, exceto nas áreas privilegiadas pelo abastecimento de água do agronegócio. Até, quem sabe, quando não houver mais nenhum grão a colher.
O rio tem 40 milhões de anos, mas apenas 20 de sobrevida
De acordo com o professor Altair Sales Barbosa, da Universidade de Goiás, o rio Arrojado tem entre 35 a 40 milhões de anos, mas, na melhor das estimativas, conta apenas com mais 20 anos de vida, caso não sejam adotadas providências urgentes”.
Conforme o monitoramento municipal, as águas do Arrojado vêm baixando 3 cm por ano. Segundo Sales, “o que se constata é que as lavouras em grande escala tomaram conta de tudo. A região já perdeu mais de 70% das áreas de Cerrado. A ocupação se deu sem qualquer controle do poder público para o plantio de soja, milho, batata, café e algodão, com desmatamento indiscriminado”.
Tudo começou na ditadura militar. E deu errado
O Brasil vivia em estado de exceção, sob a égide do regime militar. No afã de promover a expansão de fronteiras agrícolas, o IBDF – Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal, órgão correspondente ao Incra, à época, passa a disponibilizar incentivos para instalação de grandes fazendas no Oeste da Bahia. Os recursos oferecidos eram sedutores: 60% a fundo perdido e 40% a serem pagos com a comercialização das madeiras provenientes das plantações de eucalipto e pinus.
Mas deu tudo errado. Sem consulta à comunidade científica para intervenções no solo, permitiu-se a devastação de extensas áreas do Cerrado e as espécies vegetais não se adaptaram. Cada projeto devastou nada menos que 2.500 hectares – notadamente no entorno das nascentes de rios e riachos. Com inúmeros fazendeiros falindo, o prejuízo foi assumido pelo Regime. Como ficaria visível, a expansão da fronteira agrícola, no Oeste da Bahia, ocorreu sobre o território de populações de agricultores familiares, denominados “geraizeiros” e, evidentemente, causou grandes impactos sobre a sobrevivência dessas pessoas.
Soja: riqueza concentrada, pobreza generalizada
A partir da década de 80, as políticas públicas voltadas para ciência, tecnologia e inovação, principalmente em relação à produção da soja, foram fundamentais para consolidar a ocupação do Oeste. A adaptação da soja ao Cerrado obteve tanto sucesso que no início daquela década a produtividade média já era comparável à do Sul do país.
Entre 1993 e 2007, instituições de pesquisa, como a Embrapa, introduziram 195 novos cultivares, nenhum voltado para os pequenos agricultores. Por volta de 2001, a área cultivada na região Centro Oeste ultrapassaria a do Sul do país. Traduzindo, o modelo de desenvolvimento adotado, conforme diversos estudiosos, “ao mesmo tempo que se apropriou do Cerrado gerando riqueza extremamente concentrada, reproduziu a pobreza por meio da exploração da força de trabalho e dos danos ambientais”.
Durante evento na Câmara Federal, em 2016, o professor Iremar Barbosa, criticou a “política completamente liberalizante do Inema, com licenças sob avaliações auto declarativas dos proprietários de terras, sem análise real do órgão”, subordinado à Secretaria Estadual do Meio Ambiente. Segundo Iremar, “as terras do Oeste vêm sendo conquistadas à bala. Quem tiver mais munição leva”, e ele revela, ainda, a “presença de milícias organizadas pelo agronegócio”.
Há anos Iremar Barbosa denuncia a expansão do agronegócio em detrimento da vida na região.
TJB emite liminares como se estivesse rifando prêmios
O professor Iremar questionou, ainda, a emissão de liminares pelo judiciário baiano, “como se estivesse rifando prêmios”; a aprovação de legislações na Assembleia Legislativa, que só contemplam o agronegócio e, para concluir, disse que “o conflito agrário por água no faroeste da Bahia é similar à situação vivida no Sul do Pará”. Ao destacar a “relevância do Rio São Francisco, com 90% do fornecimento de água e energia para o Nordeste”, salientou que “80% dessa água vem do Oeste”.
Como se pode liberar indiscriminadamente o agronegócio na região se é um setor que elimina os rios e compacta o solo? Como é possível aceitar o volume mensal de 120 carretas com agrotóxico para, afinal, ser lançado nos rios? Como admitir a disponibilidade de piscinões, cada um com capacidade para armazenar 200 milhões de m³ de água e considerando que apenas um grande empreendimento tem construídos 10 piscinões, autorizados pelo Tribunal de Justiça?”. Vale destacar que tal disponibilidade “supera a de toda a população nordestina que sobrevive com cisternas para captação de água da chuva”. Então, conclui o professor Iremar Barbosa: “O que está acontecendo no Oeste da Bahia é uma indecência”.
Fonte: Jornal Alerta