Projeto de fake news estende imunidade parlamentar a redes, e especialistas contestam

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por Danielle Brant | Folhapress

Além dos dispositivos que aumentam a cobrança sobre as grandes empresas de tecnologia, o projeto que tenta conter a disseminação de fake news no país incluiu um trecho sobre imunidade parlamentar que tem aspectos questionados por juristas.

A apreciação do texto foi concluída na quarta-feira (8) pelo grupo de trabalho criado em junho deste ano para elaborar uma proposta para “aperfeiçoamento da legislação brasileira referente à liberdade, responsabilidade e transparência na internet”.

Com o fim desta etapa, o projeto já poderia ser levado ao plenário -o que só deve ocorrer no ano que vem, segundo o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

Para aprovar o texto, o relator do projeto no grupo de trabalho, deputado Orlando Silva (PC do B-SP), fez concessões e acatou sugestões de parlamentares, entre eles o deputado Filipe Barros (PSL-PR), aliado do presidente Jair Bolsonaro (PL).

Uma delas gerou controvérsia.

No capítulo que trata da atuação do poder público, o relator acrescentou dispositivo que estabelece que a “imunidade parlamentar material estende-se às plataformas mantidas pelos provedores de aplicação de redes sociais”.

Ou seja, manifestações de deputado e senadores em redes sociais seriam protegidas por lei.

“Certamente, o objetivo do constituinte era, se houvesse redes sociais naquele momento, estender a imunidade material para as plataformas”, disse Barros em reunião do grupo realizada em 1° de dezembro.

“Nós utilizamos as nossas plataformas para nos comunicarmos com nosso eleitor. Então não é possível que, nas nossas plataformas, nas nossas redes sociais, a imunidade não alcance as redes sociais.”

Barros é aliado do também bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ), preso em fevereiro por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), por ter publicado na internet um vídeo com ataques a ministros da corte.

Silveira foi solto em 8 de novembro, mas Moraes proibiu o bolsonarista de usar as redes sociais e de manter contato com outros investigados (exceto os que são parlamentares) no inquérito das fake news e no que investiga a existência de uma milícia digital para abalar a democracia.

Orlando Silva defendeu a inclusão do dispositivo no texto. À Folha ele disse que inúmeras leis têm texto similar ao escrito na Constituição.

“É redundância que apoia a conexão do texto constitucional com a lei em questão”, afirmou.

“Por exemplo: há um trecho no PL 2.630 [fake news] no qual é reafirmada a liberdade de expressão, que também é uma garantia constitucional. É redundante? É. Mas faz parte da lógica de construção do texto. Tem o mesmo efeito”, disse Silva.

O deputado lembrou o conceito de imunidade parlamentar previsto no artigo 53 da Constituição, segundo o qual deputados e senadores “são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.

O relator negou que o dispositivo sirva para blindar parlamentares que cometam crimes. “O melhor exemplo é o fato de termos deputados processados e presos.”

Juristas e especialistas consultados veem pouco efeito prático na inclusão do trecho no projeto.

Camila Borba Lefèvre, sócia da área de digital do escritório Vieira Rezende, ressaltou que essa proteção já está prevista na Constituição.

“Eu não vi a necessidade de repetir essa regra em uma norma inferior, que é uma lei comum”, disse. “Eu me pergunto qual a finalidade de reiterar essa norma nesse projeto de lei.”

Na avaliação dela, explicitar que a imunidade se estende às redes sociais seria desnecessário.

“O que é permitido no mundo offline também se aplica ao online”, disse. “Nada muda porque eu estou usando uma plataforma tecnológica para proferir minhas opiniões. É para dar a impressão de que os parlamentares têm mais liberdade nas redes sociais do que no mundo offline?”

Já a advogada Cecilia Mello vê no dispositivo uma movimentação para estender a garantia constitucional às plataformas de redes sociais como uma forma de isentar os responsáveis por essas plataformas pelos conteúdos veiculados por congressistas.

“O parlamentar faz um comentário que está dentro da prerrogativa dele, ou seja, ele tem uma imunidade nessa fala, e a plataforma avalia isso como inadequado ou fake news e retira o conteúdo. Aí o parlamentar diz que ele tem imunidade, e que ela não pode retirar. Esse é o jogo”, disse, lembrando que a ideia surgiu de um movimento político bolsonarista.

Na avaliação dela, o dispositivo interfere na autorregulação das redes e favorece a divulgação em larga escala de fake news, conteúdos de ameaça ou incitação à violência que podem caracterizar crimes contra a honra e de outra natureza.

“Quando a gente fala que é inconstitucional, a gente tem uma razão de fundo, porque a Constituição conferiu a imunidade aos parlamentares por serem autoridades da República, enquanto a plataforma não representa a República”, ressaltou.

“Com a extensão de imunidade, vai surgir um novo conflito, que é o de a plataforma não poder retirar um conteúdo inadequado de um parlamentar.”

Ivar Hartmann, professor associado do Insper, disse que, como a imunidade é determinada pela Constituição, só poderia ser ampliada ou restringida por uma PEC (proposta de emenda à Constituição).

“Se esse dispositivo entrar no texto da lei, o efeito prático é nulo, porque o dispositivo não está tentando restringir a imunidade, a intenção é de ampliar”, afirmou. “Tenta-se ampliar a imunidade e o que o projeto estabelece no dispositivo não precisa, porque a Constituição do jeito que é hoje já prevê. O texto é inócuo.”

Hartmann disse que há uma motivação por trás da proposta. “Tem um grupo de parlamentares que entende que o Supremo, ao interpretar de maneira mais restritiva a imunidade parlamentar, errou e restringiu demais a imunidade parlamentar”, disse.

“Eu também acho que ele tem errado, mas isso não tem nada a ver com o meio da imunidade. Tem a ver apenas com o escopo material, o que a pessoa pode falar, mas não com os limites de onde ela pode falar. Esse dispositivo também não faz nada para tentar defender a imunidade diante dessa erosão.”

Para Hartmann, é um desafio complexo estabelecer os limites para a manifestação parlamentar.

“Dizer que o Supremo não pode punir [o parlamentar por emitir suas opiniões] não é o mesmo que dizer que o Supremo não pode tomar medidas para restringir a manifestação dele. Dizer que o YouTube tem de tirar do ar um vídeo não é punir o parlamentar”, disse.

Hartmann afirmou ainda que uma eventual punição em caso de disseminação de notícias falsas teria de se basear em elementos mais sólidos contra o deputado ou senador. “Tem de provar que a pessoa sabia que era falsa e usou com má-fé”, disse.

Técnicos legislativos, por outro lado, defendem a inclusão do dispositivo no projeto relatado por Orlando Silva.

Para eles, a Constituição não é explícita ao determinar a abrangência da imunidade parlamentar e abriria espaço para que a aplicação do mecanismo de proteção às redes sociais fosse questionado judicialmente.

Na avaliação desses técnicos, a Constituição, por exemplo, não deixa claro que um conteúdo impulsionado de uma fala de deputado está abrigado por imunidade parlamentar, porque o impulsionamento amplifica o alcance do conteúdo.

A imunidade protegeria falas e opiniões, mas não necessariamente manifestações amplificadas pelas plataformas de redes sociais.